sábado, 20 de novembro de 2010

Cena-Fulgor e Figura


A Luis Maffei, que ensinou-me a ler Llansol como quem lê poesia!


Por amor aos acolhimentos de Ana de Peñalosa e à proteção de Coração do Urso, por devoção vegetal a Esse-Presença Amante e a Prunus Triloba, por respeito completo às Figuras nómadas convocadas pela Casa textual llansoliana, compartilho aqui o amor mais caro desta quase figura que vos escreve sobre os encontros da Restante Vida.
Aqui, transito pelo núcleo-fulgor dos textos de Maria Gabriela LLansol, onde as personagens saem de cena e é a própria Cena que faz-se origem e rumo do espetáculo cênico-textual! Um incrível jogo coreográfico de completo desrespeito com a Língua de Poder e de Dominação.
Aqui, não temeremos mais a impostura da língua, pois, assim como Témia, a rapariga que temia a impostura da língua aprendeu com Espinosa (O Jogo da Liberdade da Alma - Llansol - 2003), há uma pujança nómada no mundo, a enredar ser e não-ser em união mística com o Amado. Alcançaremos, por aqui, o deus que está em todas as coisas, o 'deus sive natura' de Causa Amante (Llansol - 1984), que é o mesmo Eus (deus sem D-) de Um Falcão No Punho (Llansol - 1985), a enredar Bach e Fernando Pessoa na totalidade de uma apoteose mística de Eus sob a pulsão dionisíaca da Música e do Amante mundo. Seres reais e seres não menos reais em contatos constantes de desejo, corpo, escrita... um corp'a'screver... em estados de gestação futura enredado!
Sem mais delongas, ler Llansol obriga-nos a ler, reler e des-ler toda a Cultura Ocidental, eis o convite llansoliano para o seu Pacto de Inconforto, saqueando-nos com os escritos místico medievais de Mestre Eckhart, São João da Cruz e Müntzer aliados às revoluções cósmicas de Copérnico e Giordano Bruno, passando pelas beguinas e chegando à assunção de seres vegetais provenientes de diversas camadas existenciais. Mas sua escrita ensina-nos, acima de tudo, a redescobrir no corpo um lugar de radical experiêcia dos sujeitos, dos desejos e dos convívios estéticos com outras formas para além do humano. Eis a força da palavra-clorofila e dos pecíolos de Prunus Triloba a adentrar em ramos as experiências físicas, sensoriais e imagéticas de Dom Sebastião ( o grande rei Encoberto do Sebastianismo português) tornado arbustos nos textos de Causa Amante.
Uma homenagem ardente (ref. Ardente Texto Joshua - Llansol - 1998) a uma das maiores escritoras da atual ficção contemporânea que soube, como ninguém, aliar revisitação histórica com a fragmentação e desestruturação da linguagem literária em devir poético, deixando-nos na margem do inclassificável ardente texto - não mais narrativa, não mais diário, não mais poesia, há somente aqui as vertigens ofuscantes da Literatura tornada Dionisíaca, são 'espaços de revelação do ser numa orientação mística', como diz-nos Ida Alves. Resta-nos uma última interrogação: Onde Vais, Drama-Poesia? (Llansol - 2000)

Amor, luz e revolução,
Caio Di Palma

CENA FULGOR E FIGURA

_________Uma criança sem rosto escapuliu-se, e entrou na gruta. Enrodilhei-a nas minhas saias, desejando apaixonar-me pela força intensa que eu queria que tivesse. Envolvia-a na audácia que nos espera. Cobri a cabeça, e pu-la ao seio, pois o borbotar da palavra principiava a ser maior do que o do leite.
De resto, de onde me vinha o leite, se a criança não era meu filho?.
Com os meus dedos nascentes de músico, ainda inábeis, compus-lhe a face que lhe faltava.
Futuros olhos de Aossê, futuro ouvido de Hölderlin, futura voz de Anna, futuro porte de pobre.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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legente,             o mundo está prometido ao Drama-Poesia.
(Llansol - Onde Vais, Drama-Poesia?, 2000)
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Eu leio assim este livro:
Todos cremos saber o que é o Tempo, mas suspeitamos, com razão, que só o Poder sabe o que é o Tempo: a Tradição segundo a Trama da Existência. Este Livro é a história da Tradição, segundo o espírito da Restante Vida. Mais uma razão para o não tomarmos a sério.
O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.
(Llansol, O Livro das Comunidades - Geografia de Rebeldes 1, 1977)
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O que, tanto num caso como outro,           eu procurava sem o saber, era o logos, a que mais tarde chamei Cena Fulgor - o logos do lugar; da paisagem; da relação; a fonte oculta da vibração e da alegria, em que uma cena - uma morada de imagens - , dobrando o espaço e reunindo diversos tempos,
procura manifestar-se.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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Sobre esse caminho, indo de cena em cena, deparou-se-me o que, mais tarde, chamei Figuras
Esta genealogia de figuras que o texto aqui convoca,
partilham, indubitavelmente, uma mesma problemática, quer o seu nome seja Müntzer, ou Eckhart, ou Hadewijch, ou Isabôl, ou Peñalosa, Hamman, Camões, João da Cruz, Copérnico, Nietzsche, Hölderlin, Pessoa, Kafka, Bach, Coração do Urso, Prunus Triloba, Besante, ou Protopato.
Porque todos são rebeldes a querer dobrar o tempo histórico dos homens, com o desejo intenso que eles se encaminhem para uma nova terra, bafejada por um céu novo. Na realidade, todos foram, abertamente, ou sem uma consciência clara, místicos que não o puderam ser.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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Imagem neste texto é Figura, ou seja, resto e arquétipo.
A série dos êxitos, nossa derrota, confirmou os príncipes no seu intento: queriam um só real, acabámos por pensar que um só real havia.
Esse texto des-diz esses outros que anularam este resto, este imenso resto.
Este texto diz que não havendo memória de ser humano, mais vale guardar em memória o resto, todos os restos, a restante vida.
(Llansol, A Restante Vida - Geografia de Rebeldes 2, 1982.)

Um Beijo Dado Mais Tarde


_______eu ainda não nasci, e é essa a parte mais comovente e íntima desta linguagem.
Estou a ouvir o que dizem,compondo com as mãos meus ouvidos e minha cabeça, próximo da concha improvisada onde dormem os amantes deste quarto. Não há um, nem há outro, há um clarão que excede o brilho, e que une esta noite a um vestido.
Estava no guarda-vestidos, era azul e,
ao vê-lo para ser vestido,
eu chamei-lhe
o vestido filosófico.
(Llansol, Um Beijo Dado Mais Tarde, 1990)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ácido Fuligem


Acendo o ardente texto na navalha,
A convocar o caos de nossas revoluções sexuais!
O poema ensina a cair, já disse alguém,
Sobre os diferentes solos.

Pixinguinho-me às vezes, e
De volta ao corpo em pele cativeiro,
Ponho o ácido de volta à tua boca.

Falo com o Falo que passa por nossas línguas!

Aqui, somos campos virtuais de liberdade,
Espaços cínicos e cênicos sob o impulso do jogo,
Ou de mãos abertas sobre os pêlos incendiados.

Nasço ou divino?
O que esperar dessas regras atrasadas,
desses intercursos casuais? Um filho?
Um búfalo gigante? Coração do Urso?

(Des-) organizo orgias provocantes,
Nado erros, corpos impregnados de salsugem,
Suor e álcool - recebo os restos de tua boca movediça.

Raptava, ocre,
tijolos e castiçais de argila,
que emolduram, pastosos, a lama de tuas tintas:
Sem hipocrisias, é o lusco-fusco de teu esperma matutino.

- E o quê que a gente faz com tudo isso que a gente é?, perguntou a Puta Amante.
Não mais seguidor de belas artes, fundarei outro texto:
Dalai Lama Ao Caos