segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Rum-Baco del Fuego



CLANDESTINIDADE EM TRANSES
RUM-BACO DEL FUEGO

Clã, destino, transas
Rio largo e largo a mão
na cara que nos insulta
A corja, a tribo suja a corda
Eu rôo as lâminas,
navalha-fúria que encena
a tal honra ofendida

Logo aqui,
No mar salgado Cuba
onde abri as pernas, as mãos eróticas
Aos afetos obscenos da escrita
o desejo mesclado
irado chico marijuanado

A proximidade dos espelhos,
As manchas sujas de Havanna
A máquina por escrever suores
causa-me tonturas, vertigens piores
uma trepada jogada à la sacana

Farta-me o ócio das virtudes ensolaradas
Escorrer pela praia os restos da noite rumbada, heia!

Alba nua, solo tuya
Transo as gralhas e abro-te a boca
em golpes mil da dita cuja
Miraflor ditadura
El cuerpo, el deseo

Sem ar aqui para nosotros del fuego,
Sem espaços para libertações na terra militante
Areia e mais areia de proibições por San Juan,
Lamas ideológicas a acorrentar gigantes
Sob o julgo da Revolução, um basta hiante!

A linguagem-máscara
mascara revolucionários
em insanos totalitários
Afogam-se aos montes em duchas frias
Os corpos riscados pelo silêncio que fatia

Tribo contra-revolucionária,
Ópios reacionários em devir do ego
corpo-fuligem, corpo-música
corpo-rumba orientado
Rum-Baco del Fuego

Traga-me um novo cigarro
Rum negrita, mira-me gajo
Interrompo a pélvis que se insinua na cintura
Esqueço as roucas vozes das rameiras em fissura
Por hora, em ramas de eucalipto o agarro
suspensas ou em lamas delgadas
agrestes urdiduras
Cuba

Caio Di Palma


"Se instauram em Cuba centros de detenção que funcionam como reais campos de concentração (Miraflor, El Morro e Ilha da Juventude) para dissidentes políticos, homossexuais, doentes mentais e qualquer um que 'vista calças mais justa'".
(Reinaldo Arenas - Antes do Anoitecer)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Uso do Anoitecer

Fui homem um dia?
Não sei, realmente não sei,
- É Parasceve, a Cheia de Graça, diz-me
Desce até à cidade vegetal!


Estávamos ali
No meio do jogo
Os cigarros a rasgar o escuro
Feito dois demônios de olhos incendiados


Estranhos cravados no espaço,
Um silêncio e o vazio nu
Um branco súbito
A dança de nossos lábios
Ainda inseguros, de lado


Poderei amar um dia?
Preciso de uma lâmpada mágica
Sarar as marcas
As cicatrizes, os despachos,
Os processos


Por enquanto basta!
Arrasto pelos buracos os corpos que almejo.
Nadar por alguns minutos as tramas
Trar-me-á mais desejo?
Vadia, puta
marginal delinqüente
Que rasgo nas noites


Fodo um rosto largo
e um sorriso faz-me anjo
Onde estou,
basta por hoje!


Sou sombra e fuligem
Desgaste e muita chuva,
Bilhões de neuras de artistas pelo buraco!


Eia, rosto em lama e escárnio que sempre trago
No maço de cigarros um chumaço
Ópio das cirandas mudas,
Não mais telepáticas


Sinto falta do homem
que poderia ter sido,
Do mártir que acreditei ter vivido


Para alguns
somente brumas
palácios indefinidos


Trago lâminas, machos,
odor e muito aço
mas confesso que estou cansado!

sábado, 20 de novembro de 2010

Cena-Fulgor e Figura


A Luis Maffei, que ensinou-me a ler Llansol como quem lê poesia!


Por amor aos acolhimentos de Ana de Peñalosa e à proteção de Coração do Urso, por devoção vegetal a Esse-Presença Amante e a Prunus Triloba, por respeito completo às Figuras nómadas convocadas pela Casa textual llansoliana, compartilho aqui o amor mais caro desta quase figura que vos escreve sobre os encontros da Restante Vida.
Aqui, transito pelo núcleo-fulgor dos textos de Maria Gabriela LLansol, onde as personagens saem de cena e é a própria Cena que faz-se origem e rumo do espetáculo cênico-textual! Um incrível jogo coreográfico de completo desrespeito com a Língua de Poder e de Dominação.
Aqui, não temeremos mais a impostura da língua, pois, assim como Témia, a rapariga que temia a impostura da língua aprendeu com Espinosa (O Jogo da Liberdade da Alma - Llansol - 2003), há uma pujança nómada no mundo, a enredar ser e não-ser em união mística com o Amado. Alcançaremos, por aqui, o deus que está em todas as coisas, o 'deus sive natura' de Causa Amante (Llansol - 1984), que é o mesmo Eus (deus sem D-) de Um Falcão No Punho (Llansol - 1985), a enredar Bach e Fernando Pessoa na totalidade de uma apoteose mística de Eus sob a pulsão dionisíaca da Música e do Amante mundo. Seres reais e seres não menos reais em contatos constantes de desejo, corpo, escrita... um corp'a'screver... em estados de gestação futura enredado!
Sem mais delongas, ler Llansol obriga-nos a ler, reler e des-ler toda a Cultura Ocidental, eis o convite llansoliano para o seu Pacto de Inconforto, saqueando-nos com os escritos místico medievais de Mestre Eckhart, São João da Cruz e Müntzer aliados às revoluções cósmicas de Copérnico e Giordano Bruno, passando pelas beguinas e chegando à assunção de seres vegetais provenientes de diversas camadas existenciais. Mas sua escrita ensina-nos, acima de tudo, a redescobrir no corpo um lugar de radical experiêcia dos sujeitos, dos desejos e dos convívios estéticos com outras formas para além do humano. Eis a força da palavra-clorofila e dos pecíolos de Prunus Triloba a adentrar em ramos as experiências físicas, sensoriais e imagéticas de Dom Sebastião ( o grande rei Encoberto do Sebastianismo português) tornado arbustos nos textos de Causa Amante.
Uma homenagem ardente (ref. Ardente Texto Joshua - Llansol - 1998) a uma das maiores escritoras da atual ficção contemporânea que soube, como ninguém, aliar revisitação histórica com a fragmentação e desestruturação da linguagem literária em devir poético, deixando-nos na margem do inclassificável ardente texto - não mais narrativa, não mais diário, não mais poesia, há somente aqui as vertigens ofuscantes da Literatura tornada Dionisíaca, são 'espaços de revelação do ser numa orientação mística', como diz-nos Ida Alves. Resta-nos uma última interrogação: Onde Vais, Drama-Poesia? (Llansol - 2000)

Amor, luz e revolução,
Caio Di Palma

CENA FULGOR E FIGURA

_________Uma criança sem rosto escapuliu-se, e entrou na gruta. Enrodilhei-a nas minhas saias, desejando apaixonar-me pela força intensa que eu queria que tivesse. Envolvia-a na audácia que nos espera. Cobri a cabeça, e pu-la ao seio, pois o borbotar da palavra principiava a ser maior do que o do leite.
De resto, de onde me vinha o leite, se a criança não era meu filho?.
Com os meus dedos nascentes de músico, ainda inábeis, compus-lhe a face que lhe faltava.
Futuros olhos de Aossê, futuro ouvido de Hölderlin, futura voz de Anna, futuro porte de pobre.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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legente,             o mundo está prometido ao Drama-Poesia.
(Llansol - Onde Vais, Drama-Poesia?, 2000)
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Eu leio assim este livro:
Todos cremos saber o que é o Tempo, mas suspeitamos, com razão, que só o Poder sabe o que é o Tempo: a Tradição segundo a Trama da Existência. Este Livro é a história da Tradição, segundo o espírito da Restante Vida. Mais uma razão para o não tomarmos a sério.
O escrever acompanha a densidade da Restante Vida, da Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.
(Llansol, O Livro das Comunidades - Geografia de Rebeldes 1, 1977)
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O que, tanto num caso como outro,           eu procurava sem o saber, era o logos, a que mais tarde chamei Cena Fulgor - o logos do lugar; da paisagem; da relação; a fonte oculta da vibração e da alegria, em que uma cena - uma morada de imagens - , dobrando o espaço e reunindo diversos tempos,
procura manifestar-se.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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Sobre esse caminho, indo de cena em cena, deparou-se-me o que, mais tarde, chamei Figuras
Esta genealogia de figuras que o texto aqui convoca,
partilham, indubitavelmente, uma mesma problemática, quer o seu nome seja Müntzer, ou Eckhart, ou Hadewijch, ou Isabôl, ou Peñalosa, Hamman, Camões, João da Cruz, Copérnico, Nietzsche, Hölderlin, Pessoa, Kafka, Bach, Coração do Urso, Prunus Triloba, Besante, ou Protopato.
Porque todos são rebeldes a querer dobrar o tempo histórico dos homens, com o desejo intenso que eles se encaminhem para uma nova terra, bafejada por um céu novo. Na realidade, todos foram, abertamente, ou sem uma consciência clara, místicos que não o puderam ser.
(Llansol, Lisboaleipzig 1: O encontro Inesperado do Diverso, 1994)
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Imagem neste texto é Figura, ou seja, resto e arquétipo.
A série dos êxitos, nossa derrota, confirmou os príncipes no seu intento: queriam um só real, acabámos por pensar que um só real havia.
Esse texto des-diz esses outros que anularam este resto, este imenso resto.
Este texto diz que não havendo memória de ser humano, mais vale guardar em memória o resto, todos os restos, a restante vida.
(Llansol, A Restante Vida - Geografia de Rebeldes 2, 1982.)

Um Beijo Dado Mais Tarde


_______eu ainda não nasci, e é essa a parte mais comovente e íntima desta linguagem.
Estou a ouvir o que dizem,compondo com as mãos meus ouvidos e minha cabeça, próximo da concha improvisada onde dormem os amantes deste quarto. Não há um, nem há outro, há um clarão que excede o brilho, e que une esta noite a um vestido.
Estava no guarda-vestidos, era azul e,
ao vê-lo para ser vestido,
eu chamei-lhe
o vestido filosófico.
(Llansol, Um Beijo Dado Mais Tarde, 1990)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Ácido Fuligem


Acendo o ardente texto na navalha,
A convocar o caos de nossas revoluções sexuais!
O poema ensina a cair, já disse alguém,
Sobre os diferentes solos.

Pixinguinho-me às vezes, e
De volta ao corpo em pele cativeiro,
Ponho o ácido de volta à tua boca.

Falo com o Falo que passa por nossas línguas!

Aqui, somos campos virtuais de liberdade,
Espaços cínicos e cênicos sob o impulso do jogo,
Ou de mãos abertas sobre os pêlos incendiados.

Nasço ou divino?
O que esperar dessas regras atrasadas,
desses intercursos casuais? Um filho?
Um búfalo gigante? Coração do Urso?

(Des-) organizo orgias provocantes,
Nado erros, corpos impregnados de salsugem,
Suor e álcool - recebo os restos de tua boca movediça.

Raptava, ocre,
tijolos e castiçais de argila,
que emolduram, pastosos, a lama de tuas tintas:
Sem hipocrisias, é o lusco-fusco de teu esperma matutino.

- E o quê que a gente faz com tudo isso que a gente é?, perguntou a Puta Amante.
Não mais seguidor de belas artes, fundarei outro texto:
Dalai Lama Ao Caos

sábado, 16 de outubro de 2010

Aos Atravessados - Ao Fogo das Paixões Revolucionárias


Aos Atravessados


Às insinuações estranhas do desejo!
Ao nosso destino sublime e libertador de cada dia!
Aos homens e mulheres que nos inflam de sonhos e de loucura!
Às paixões da humanidade, e às fomes do corpo!
Dou-lhes o brinde sagrado de todos os vinhos!

Aqui,
Todos os homens tornam-se deuses,
Em encenação cínica e cênica da vida,
Em irradiação sublime de paixões!
Tecendo, na batalha da vivência, máscaras e vertigens,
Fomes e libertações,
Utopias em devaneios, mais que dispersões do corpo e da mente!
Tornamo-nos vadios e vaporosos,
Figuras riscadas num teatro mais que obsceno.

Às emanações do álcool,
Às salsugens a dançarem por nossos corpos libertos!

E então, sob este efeito radiante,
Observo-me em sutis mutações,
Como quem pelo corpo fala com o Falo:
A poesia entorna-se por meus pés
Os olhos se enchem de lágrimas e de flores,
De ardor e de agonia.

Paralisado e entorpecido,
Desfaço-me em água e fundo-me ao ar
Em gotas ou em brasas,
Caio no mundo como uma chuva que acontece
A irradiar outros nomes por tantas mudas
Muitas praias de transas curtas

Caio, já caído, sem rumo e sem corpo,
Sobre as pedras do litoral
E entendo, por fim, as palavras que criaram
Homens e deuses na forma de barro:

‘Todos os homens tornam-se deuses na comunhão sublime das paixões’

Às insinuações marginais do desejo!
Ao destino novo de cada dia!
Aos sujeitos que nos inflam os sonhos de loucura!
Às paixões da humanidade, às fomes do corpo!

Dou-vos o brinde profano de todas as poesias!

Um Brinde Aos Libertários Por Todo Mundo!





Aos Iluminados - Ao álcool e à libido de nossos corpos!


Há anos penso em homenagear-vos,
Brindar essa essência ilustre e transgressora,
Dar, aos espíritos vadios, a paixão irregular sonhada sempre!
A viagem de todas as manifestações,
A revolução de todas as lutas,
Eis aí a última quimera de nossa geração!

Pois nós tivemos um segundo batismo no mundo
Por nossas paixões embriagadas, mais que abençoadas.
E aqui, na origem dos nascimentos em potenciais,
A alma dispara insana ao precipício das Taquicardias do Ideal.
Engendraremos, qualquer dia, um Centauro, meus irmãos!

Brindemos às Asas de nossos Destinos e de todas as Libertações!
À Luta sempre presente,
De nossos peitos entregues às espadas dos repressores,
Ao suor de nossas testas ensangüentadas e à paixão de nossa causa

Ao álcool de nossas transgressões, à Libido de nossas Libertações!
Um homem, um poeta, um militante,
Um Louco! Quase uma visão sonhada em noites de desterros!
À Labareda de nossas Paixões!

A nós, e a todos que virão gritando Fogo no umbigo do mundo,
Dou-vos parte de mim,
Minha alma e pulsão de vida,
Meu vinho, tantas vezes inflamado!

Transgredimos a medida, descalços no mundo,
Despidos das regras e de nossas vestes
Marcharemos rebeldes, rumo à libertação de nossas mentes!
E aos amores, não me chamem Pedro ou Ricardo,
Meu nome é a Bruta Rebeldia, a Ilustre Transgressão!

Bebamos mais, quantas vezes nossos corpos pedirem!
 

Federico García Lorca - Da Fuga


A meu amigo Miguel Pérez Ferrero

Perdi-me muitas vezes pelo mar,
o ouvido cheio de flores recém cortadas,
a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes perdi-me pelo mar,
como me perco no coração de alguns meninos.
Não há noite em que, ao dar um beijo,
não sinta o sorriso das pessoas sem rosto,
nem há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
se esqueça das imóveis caveiras de cavalo.
Porque as rosas buscam na frente
uma dura paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
senão imitar as raízes sob a terra.
Como me perco no coração de alguns meninos,
perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma.
 (Federico García Lorca)

Lorca desenvolve uma poética profundamente incomodativa aos circuitos conservadores da cultura européia de sua época, ao destacar, tanto em versos quanto em montagens cênicas no La Barraca, uma linguagem do desejo vividamente homoerótico.
Poeta de Granada, Espanha, García Lorca é figura vanguardista para os calores lírico-pictóricos de Salvador Dalí e Luis Buñuel. Laços mais que afetivos enredam uma aliança triádica entre esses 'Refugiados na Arte', quando, entregues aos enigmas dos encontros diáfanos, revelam novos traços marginais para os sujeitos-receptores. Estetas por excelência, trazem  consigo linguagens  para além do impressionismo aurático: um reside nos resquícios desmitificados e obscuros da psichè humana, o outro convoca os fragmentos reticentes de toda uma linguagem poética voltada para os seus restos. Às margens do poder erigido, os artistas convocam o mundo e suas histórias para um novo ciclo de recomeço.  Filhos de uma 'geografia de rebeldes' nas Artes, não à toa trazem tatuados em seus corpos o mesmo signo-cidade: Andaluzia.
A nós, carga volátil em transes explosivos de estruturação final da obra de arte, resta-nos o trabalho mais árduo  de todos: perder-nos completamente nas meta-transformações propostas por suas obras. Eis nosso 'LÁZARO, VENIS FORA' e os dados de nosso jogo lúdico com a obra estética, enfim nosso pacto ficcional refeito!
 


(ver: relações entre a cidade-nascimento de García e o filme surrealista 'Um Cão Andaluz', de Buñuel e Dalí).

Marighella Vive!

Obra marcante e genial do grande líder comunista Carlos Marighella - militante de esquerda, expoente e um dos grandes mártires dos movimentos de resistência contra a Ditadura Militar no Brasil desde 1964. Morto em emboscada próxima à Alameda Casa Branca (SP), em 1969, sua obra até hoje constrói sonhadores que costuram armas, flores e idéias em torno de seu projeto utópico de guerrilha e revolução urbana. Leitura fundamental para todos os apaixonados pelas lutas libertárias em nossos espaços medíocres e escravizados de formação cultural.

Batismo de Sangue (2007), o filme genial de Helvécio Ratton foi baseado no livro homônimo do Frei Betto, frade dominicano que esteve envolvido com as lutas revolucionárias. Os freis Tito de Alencar, Betto, Oswaldo, Fernando e Ivo apoiaram ideologica e politicamente o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional, sob o comando e organização de Marighella. O filme traz um retrato marcante e contundente desses homens bravos, verdadeiros cristãos de fé, que, a fim de assegurarem a libertação do povo, entregaram-se aos riscos da luta e foram presos e torturados nos porões escuros da DOPS.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Cicatrizes Em Espelhos Carnavalescos - Lamas Brasileiras


 
Sem grandes manifestações poéticas ou apaixonadas essa noite, amantes, apenas proponho uma reflexão sobre nossa história tão marcadamente brasileira, uma psicanálise mítica do nosso destino nacional.
Somos um povo espoliado e destruído historicamente, isso é um fato. É triste verificar que, após quase um século de 'pseudo' identidade nacional, ainda não digerimos nossos traumas, nossas fraquezas, nossa raquítica formação
político-cultural. Enfim, nossas 'fichas ainda não caíram' desse orelhão público em desolação sentimental. Fomos todos punidos por essa orfandade espiritual e social que nos arrasta pelas vias da neo-escravização global que nos impele à arrogância, à cegueira, ao preconceito, ao ódio e à burrice planetária escondida numa pseudo globalização!
Filhos abandonados que somos, mediatizamos uma cura através da falsa alegria, do punhado de ingenuidade e ignorância cultural como formas de suprir essa necessidade paterna, essa obscura vocação para o paternalismo político, social, econômico e religioso. Nossa sede de Pai nos impele à busca de mártires, de apóstolos e de pastores ungidos por Deus, é essa a fé indolente dos bárbaros que somos! Incapazes de aprender a votar, a compreender a importância da política para a construção dos rumos nacionais, elegemos o 'devoto' de Deus, a ridícula e patética discussão religiosa a obscurecer a real importância das Eleições - competência política, tão somente, e não 'pseudos-virtudes morais' sagradas por Deus. Ah, quem somos, senão pobres crianças com cajados nas mãos!
Cantamos os momentos mais traumáticos de nossas vidas com uma pomposa honraria digna de filhos lusos, o 'Descobrimento do Brasil', a 'Chegada da Família Real', o 'Brasil Império'... é como se nossas terras estivessem na escuridão e tivéssemos sido salvos de um mar de ignorância e ateísmos, nossos heróis lusos, tão forjadamente europeus, aristocráticos e exploradores. Onde está o respeito aos milhares de homens mortos e sacrificados de nossa nação, indígenas, negros, africanos da diáspora, mártires da resistência?
Sabemos quem somos realmente? Negamo-nos a verificar que fomos e ainda somos, sim, uma nação arruinada, pobre, massacrada, explorada e espoliada em seus bens materiais, humanos e sentimentais. É verdade que não chegamos a possuir uma hiper-identidade nacional, nem vimos um sonho de um Quinto Império afundar nos mares da História, nossa localidade identitária não se firmou no mar (ainda bem)! Esse, pelo menos, não é o topos de nossa identidade - o mar, tão marcadamente brasão na identidade mítica portuguesa! Se os portugueses forjaram e mitificaram sua identidade como 'povo eleito' num messianismo sebástico, nós, pelo menos, não temos de nos deparar com a imagem arquetípica de quem construímos ser e quem, de fato, somos! Nossa identidade é para dentro da terra, e não temos de silenciar os mares e olhar os processos da terra.
No entanto, não aprendemos a nos ver, recusamo-nos a expor e avaliar nossas cicatrizes, nossas marcas. São as cicatrizes as mais belas e concretas manifestações que definem quem o homem é, quem somos como povo. Um homem sem cicatrizes, sem marcas, é como um fantasma, uma sombra despida de veracidade, um corpo que se ausenta e apenas se firma como imagem tosca e banal de aparências externas, é um mero objeto quase que indistinto de uma cadeira ou de uma lâmpada! Orgulho-me de minhas cicatrizes, são elas que contam a história da minha vida, os caminhos que andei e o homem que me tornei!
Creio que já passou da hora de abandonarmos um pouco nossas máscaras tão carnavalescas e tão festivas, nosso humor carioca malandro, nosso molejo exótico, nossa sensualidade latina, e olharmos de frente nossos traumas como povo brasileiro, encarar nossas vicissitudes! É triste verificar que os portugueses digerem até hoje seus traumas históricos, sua derrocata ultramarina e a ruína histórica desse país que vive a falência de um sonho que nunca existiu, sempre à margem da Europa; Angola e Moçambique não deixam por menos, e refletem, digerem, analisam séria e contundentemente seus processos internos, a cissão das etnias e das tribos, as mortes, os crimes, a diáspora africana, as guerras civis, a miséria, a fome e as violências. E nós, que fazemos? Escondemo-nos de nós mesmos e forjamos uma pseudo-identidade nacional carnavalizada, exótica e festiva, o país do futebol, das mulheres gostosas e do samba! Amadureçamos, povo, é o que venho dizer aqui! Cariocas, paulistas, mineiros, baianos, paraíbas, toda essa multiplicidade cultural e étnica que temos nesse teritório, vamos 'redescobrir o Brasil'. Tenhamos uma identidade verdadeira como Nação, e deixemos de lado Bakthin com sua Teoria da Carnavalização!

Por fim, deixo uma inspiração com o genial J.B. Lenoir e a história da diáspora africana nos Estados Unidos e a perseguição aos negros pela KKK, a outra história americana no Alabama.

http://www.youtube.com/watch?v=ZvilFSMVHTs&feature=player_embedded

Carta 09 - Henfil (De paixões e de revoluções)


"São Paulo, 1º de setembro de 1978.

Eu nunca soube amar. Eu nunca soube amar a cada um. Eu nunca soube amá-los como indivíduos. Eu nunca soube aceitá-los como feios, fracos e lentos. Tragam-me um doente e não chorarei com ele. Mas me mostrem um hospital e derramarei rios e mares. Eu não sei falar e ouvir um homem, uma mulher ou uma criança. Eu só sei fazer coletivo, massa, povo, conjunto. Sou capaz de ser herói, mas não sou capaz de ser enfermeiro. Sou capaz de ser grande, mas não sou capaz de ser pequeno. Eu nunca dei uma flor. Nunca amei uma pessoa. E tenho amor. Dou desenhos, dou textos, escrevo cartas. Sem contato manual, sem intimidade, sem entregar. Por que desenho, por que escrevo cartas? Minha arte é fruto da minha importância de viver com vocês. Um dia, vou rasgar o papel que escrevo, rasgar o bloco que desenho, rasgar até esse recado covarde e vou me melar e besuntar com vocês, tudo com meu grande beijo. Vocês vão me reconhecer fácil: vou ser o mais feliz de vocês.

Henfil"
 

KALÓS KAI AGATHÓS DIONISOS


Há ecos profundos nas margens do corpo,
Dissimulação de ossos onde fraturas revelam o enigma
Brancas mãos esculpem o rosto que lanço no fogo
Ao redor do corpo danço, e exalto Guernica

Há incêndios de noite que amam a cortesia
Lembranças de máscaras que perduram nos dias
Torno-me corpo d'água em mistérios de maresia
A atracar no meio de tuas coxas vadias
A nau que ofereço cortesias

Ah bela bacante, comedora de carnes cruas
Aproxima-te da loucura do teu Dionisos
E ainda fresca, com todo furor de tuas artes nuas
Renda-me prazeres pois na máscara deixei os sorrisos

Se na coxa de Zeus surgi para Hesíodo como deidade,
No vinho surgi para tebanos e áticos como anfitrião de insanidades
Deus das metamorfoses, da loucura, das máscaras e do teatro
Entre as Fúrias e as Mênades, talvez um meio termo bárbaro e austero,
Ao mesmo tempo homem e mulher de incongruentes vontades
O belo Dionisos, um duplo melhor que Homero.


quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre Tudo Em Devaneios



Boas noites parceiros (nem todos sexuais, se me lembro bem),
 
O que eu faço com tudo isso, com tudo isso que a gente é?!
Acho que já entrei na dança, mas é mais do que a hora de convulsionarmos os campos sistemáticos de nossa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com a manifestação de alguma arte ou pulsão de vida que se torne potência de revoluções!
Sem querer desistir, sem querer empurrar por aí pedaços de papel rasgado em cima de uma mesa de bar, sem corações partidos em frente a uma carta de amor, o que quero é a ação nomada de cada um de nós: um ato, um manifesto, uma canção, uma PERFORMANCE, uma fala,  uma despedida convincente de afeto, encenação cínica e cênica da existência,
uma ascensão completa de corpos que se encontram por aí. Temos cartas em gavetas, pinturas em pastas, fotografias em acervos digitais, tornemos essas marcas de nossos corpos tatuados em herança tardia para essa geração orkutiana e barata que se configura pelos buracos dessa cidade! Uma Arte Total a perambular pelas ruas esboçadas por aí (mas não se percam por aqui, não por aqui), filha e mãe de sujeitos libertários e vadios que se perdem pelas madrugadas das sujas palavras. Quem sabe nos encontramos num dia, na Lapa, no Arpoador, em São Tomé das Letras, em Lumiar  ou nas cachoeiras que falam conosco de Santo Antonio de Bocaina. Ambos a escolher e a querer tudo sem desistir, a mexer os alicerces tacanhos de nossa medíocre formação cultural, humana e sexual brasileira!
Cheguemos fundo, bem fundo, camaradas, ao orgasmo encontrado por aí, lado a lado das alagadas ações dos bastidores - Ato, Forma, Ação, Mundo, Largado, REVOLUÇÃO e LIBERTAÇÃO! Cabelos Molhados!
Sinto falta de uma cidade mais engajada em movimentos de devaneios, utopias culturais e sexuais! Uma localidade plural e total, construída por bravos sujeitos que se entregam às lutas da revolução libertária, armados ou não com manifestos, flores, panfletos, tintas, idéias, performances, ou com o próprio sexo que se mostra e lidera uma crise contra os ditâmes preconceituosos de nossa medíocre formação sexual brasileira.
Onde está o Senzala? Radiola na Praça? Tá na Rua se burocratizou e Nós do Morro viaja ao exterior?!
Ah, onde está a Sociedade Alternativa que transformaria os corpos em campos virtuais de liberdade?!
Manifestemos, pois, nossas vontades e sangrias desatadas por rebeliões e devaneios poético-libertários em cartas marcadas num jogo roubado, irmãos-vadios a transgedir os abrigos burocráticos do sistema e o às de todo baralho!
E o que faremos com as fomes de nossos corpos vorazes por arte, sexo e toda sorte de re-descobertas sensoriais, em ascensão febril de desejo?  O que fazer com tudo isso que a gente é?
Honrando os passo de nossos delírios, seremos coroados pelo deus estranho das máscaras, do devaneio, da loucura e do teatro!
À Dioniso e a todos os poetas, aos artistas boêmios, aos músicos errantes e aos revolucionários de todas  as origens e etnias. Sejamos campos virtuais de libertadade em contradança ao sistema opressor das culturas e das sociedades, uma contra-resposta ao lirismo tacanho das academias! Façamos nossa arte 'errante', pois o incômodo é o início do manifesto!Sejamos uma carta marcada de jogo roubado, moleque da rua, moleque do mundo, moleque do espaço, como diz Raul Seixas! Amo a tudo e a todos aqui, não mais que aqui!
Amor e revolução no coração de todos os homens,
Caio Di Palma