Sem grandes manifestações poéticas ou apaixonadas essa noite, amantes, apenas proponho uma reflexão sobre nossa história tão marcadamente brasileira, uma psicanálise mítica do nosso destino nacional.
Somos um povo espoliado e destruído historicamente, isso é um fato. É triste verificar que, após quase um século de 'pseudo' identidade nacional, ainda não digerimos nossos traumas, nossas fraquezas, nossa raquítica formação
político-cultural. Enfim, nossas 'fichas ainda não caíram' desse orelhão público em desolação sentimental. Fomos todos punidos por essa orfandade espiritual e social que nos arrasta pelas vias da neo-escravização global que nos impele à arrogância, à cegueira, ao preconceito, ao ódio e à burrice planetária escondida numa pseudo globalização!
Filhos abandonados que somos, mediatizamos uma cura através da falsa alegria, do punhado de ingenuidade e ignorância cultural como formas de suprir essa necessidade paterna, essa obscura vocação para o paternalismo político, social, econômico e religioso. Nossa sede de Pai nos impele à busca de mártires, de apóstolos e de pastores ungidos por Deus, é essa a fé indolente dos bárbaros que somos! Incapazes de aprender a votar, a compreender a importância da política para a construção dos rumos nacionais, elegemos o 'devoto' de Deus, a ridícula e patética discussão religiosa a obscurecer a real importância das Eleições - competência política, tão somente, e não 'pseudos-virtudes morais' sagradas por Deus. Ah, quem somos, senão pobres crianças com cajados nas mãos!
Cantamos os momentos mais traumáticos de nossas vidas com uma pomposa honraria digna de filhos lusos, o 'Descobrimento do Brasil', a 'Chegada da Família Real', o 'Brasil Império'... é como se nossas terras estivessem na escuridão e tivéssemos sido salvos de um mar de ignorância e ateísmos, nossos heróis lusos, tão forjadamente europeus, aristocráticos e exploradores. Onde está o respeito aos milhares de homens mortos e sacrificados de nossa nação, indígenas, negros, africanos da diáspora, mártires da resistência?
Sabemos quem somos realmente? Negamo-nos a verificar que fomos e ainda somos, sim, uma nação arruinada, pobre, massacrada, explorada e espoliada em seus bens materiais, humanos e sentimentais. É verdade que não chegamos a possuir uma hiper-identidade nacional, nem vimos um sonho de um Quinto Império afundar nos mares da História, nossa localidade identitária não se firmou no mar (ainda bem)! Esse, pelo menos, não é o topos de nossa identidade - o mar, tão marcadamente brasão na identidade mítica portuguesa! Se os portugueses forjaram e mitificaram sua identidade como 'povo eleito' num messianismo sebástico, nós, pelo menos, não temos de nos deparar com a imagem arquetípica de quem construímos ser e quem, de fato, somos! Nossa identidade é para dentro da terra, e não temos de silenciar os mares e olhar os processos da terra.
No entanto, não aprendemos a nos ver, recusamo-nos a expor e avaliar nossas cicatrizes, nossas marcas. São as cicatrizes as mais belas e concretas manifestações que definem quem o homem é, quem somos como povo. Um homem sem cicatrizes, sem marcas, é como um fantasma, uma sombra despida de veracidade, um corpo que se ausenta e apenas se firma como imagem tosca e banal de aparências externas, é um mero objeto quase que indistinto de uma cadeira ou de uma lâmpada! Orgulho-me de minhas cicatrizes, são elas que contam a história da minha vida, os caminhos que andei e o homem que me tornei!
Creio que já passou da hora de abandonarmos um pouco nossas máscaras tão carnavalescas e tão festivas, nosso humor carioca malandro, nosso molejo exótico, nossa sensualidade latina, e olharmos de frente nossos traumas como povo brasileiro, encarar nossas vicissitudes! É triste verificar que os portugueses digerem até hoje seus traumas históricos, sua derrocata ultramarina e a ruína histórica desse país que vive a falência de um sonho que nunca existiu, sempre à margem da Europa; Angola e Moçambique não deixam por menos, e refletem, digerem, analisam séria e contundentemente seus processos internos, a cissão das etnias e das tribos, as mortes, os crimes, a diáspora africana, as guerras civis, a miséria, a fome e as violências. E nós, que fazemos? Escondemo-nos de nós mesmos e forjamos uma pseudo-identidade nacional carnavalizada, exótica e festiva, o país do futebol, das mulheres gostosas e do samba! Amadureçamos, povo, é o que venho dizer aqui! Cariocas, paulistas, mineiros, baianos, paraíbas, toda essa multiplicidade cultural e étnica que temos nesse teritório, vamos 'redescobrir o Brasil'. Tenhamos uma identidade verdadeira como Nação, e deixemos de lado Bakthin com sua Teoria da Carnavalização!
Por fim, deixo uma inspiração com o genial J.B. Lenoir e a história da diáspora africana nos Estados Unidos e a perseguição aos negros pela KKK, a outra história americana no Alabama.
http://www.youtube.com/watch?v=ZvilFSMVHTs&feature=player_embedded